quarta-feira, 28 de outubro de 2009

CRÓNICAS DO NOSSO MUNDO

UM ACORDEÃO EM LISBOA

Por: JAIME AZULAY*

O que me seduz nas grandes cidades não são as torres de betão, com espelhos que não devolvem sorrisos, nem o chamariz dos reclames luminosos digladiando nas fachadas dos edifícios: –“compra-me, compra-me, sou melhor que este e mais barato que aqueloutro! Existe sempre um vagido Humano, gritando Liberdade na gélida floresta de concreto. Certo dia, navegava perdido no mar cosmopolita de Lisboa. Repentinamente, dei comigo encalhado numa ilhota singela, que o destino fez chegar até mim, sob a forma de inebriantes notas musicais. O som vinha das entranhas de um acordeão, que as mãos calosas de um velho cego faziam contorcer, num canto do metropolitano. Estava em Entrecampos.

As hordas humanas fluíam aos magotes, como carne empacotada, a subir e a descer das carruagens do metro, alheias aos gemidos suplicantes do artista solitário. Esporadicamente, uma mão apressada soltava uma moeda, que ia anichar-se num pequeno prato que o músico tinha diante de si.

Fui tragado pelo sublime chamamento, como acontece no mar aos marinheiros que ouvem o canto das sereias. Aproximei-me lentamente do velho. Ele tinha um rosto bexigoso e arredondado. Dos lábios irrequietos, pendia, displicente, uma beata de cigarro embebida em saliva escura. A sua figura divina diluía-se numa auréola de inquietante genialidade. Era como se dele não emanasse, sequer, um sopro de mortalidade. Somente espírito sereno vagando na imensidão.

Ao vê-lo tactear o acordeão, vislumbrei a fragilidade da existência terrena a exaurir-se, sem glórias nem honras, nas teias do egoísmo desmesurado e da petulante hipocrisia. Naquele instante crucial, desenhava-se ali a nossa angustiante encruzilhada: A vida seria ainda um sonho virgem, sonhado no regaço do universo infinito, ou já a tormenta do cosmos prostituído pelos foguetes espaciais? Ou talvez fosse, simultaneamente, tudo e nada, uma massa confusa de ódio e amor, lealdade e traição indissolúveis?

A música serpenteava no túnel em vagas sucessivas, como as ondas do mar, buscando com ansiedade, a essência dos seres e das coisas. Fundia-se no útero da terra ao magma dos vulcões adormecidos, que aguardam o sublime instante da majestosa erupção. O fole do acordeão vibrava, em cadência ora branda ora intensa, até ao limite virtuoso de um orgasmo sem fronteiras, o vulcão expelindo a pujante lava cor-de-fogo escorrendo pelas coxas da montanha verdejante.

Da garganta do velho gotejavam sussurros, que se iam ajustando, mansamente, à voz piedosa do acordeão. As notas musicais rodopiavam na partitura da virtude humilhada, do mesmo modo que rolam pela face dos amantes as lágrimas salgadas do amor perdido numa qualquer esquina da vida. Por instantes, a música ameaçava naufragar no oceano revolto da arrebatadora paixão, mas logo retornava, feita espuma nostálgica, atirada às praias da impossível renúncia.

As notas graves exilavam-se, resignadas, numa toada repetitiva, cadenciada no compasso das inalações sôfregas do fole, enquanto os dedos da mão direita cavalgavam as teclas como fogosos corcéis, galopando livremente pelas anharas da melancolia. E de novo bramia o canto da dor indizível, balançando na perfídia do mar escuro, e outra vez a harmonia branda a cobrir a areia fina do amor inocente, sem mágoas nem prantos.

Quando, finalmente, se extinguíram os acordes da sinfonia divina, o velho cego ergueu ligeiramente a cabeça, como quem destapa um segredo. Escondido sob o feltro do chapéu seboso, o seu semblante mágico banhava-se num indescritível lago de serenidade.

Foi numa manhã de inverno, que vi em Lisboa essa estrela fugaz riscando no céu o hino do amor.

*Estudante do curso de Direito

A CO-RESPONSABILIZAÇÃO

Há já algum tempo que não rabisco algumas linhas, nesta página reservada ao editor. As razões foram várias, e não interessa aqui menciona-las. O certo é que, não é boa a razão que me leva a escrever de novo. Cá vamos; É como muito desagrado que temos constatado uma certa tendência por parte dos nossos estudantes em vandalizar o nosso Jornal Mural “ O Universitário”. Fazem observações descabidas, corrigem erros que não existem, assinam nas margens das folhas, em fim, profanam este, que seria o nosso “santuário” do debate aberto, franco e participativo. Devemos aqui, reconhecer as nossas falhas ortográficas e por isso, agradecemos desde já à todos quantos têm nos ajudado a corrigi-las, ao mesmo tempo que pedimos pelo facto, desculpas aos caros leitores. Voltando à vaca fria, estes estudantes que tentam sem sucesso desencorajar a nossa produção, não sabem que estão a dar um tiro “para as suas próprias pernas”. O jornal mural é de todos. Mesmo que apenas alguns se oferecem a escrever para ele, todos o lêem, ou pelo menos deviam. Consterna-nos bastante saber que nossa universidade com cerca de dois mil alunos, apenas três escreveram algumas vezes artigos ou outro tipo de matéria em mais de cinco meses de existência do jornal mural. Este cenário obriga-nos a corroborar com a ideia de que, há estudantes na nossa universidade que não estão interessados na academia, no saber e no debate de ideias. Estão apenas preocupados em passar de ano. Porém não queremos acreditar que esta seja a verdade sobre o assunto. Mas, escrever nas margens das matérias do jornal é uma prática condenável e vergonhosa para um estudante do ensino superior. É verdade que, sempre que posso, desabafo com professores e estudantes sobre o facto de não escreverem para o jornal. Todos se desculpam de mil maneiras, nem sempre diferentes. Alegar que a vida anda muito corrida, por isso, não pode escrever um texto para jornal em seis meses, não certamente plausível para quem frequenta a universidade ou por outra, para quem busca o saber. Outro dia estava eu, a mexer com os meus pauzinhos, quando me ocorreu a ideia de promover um ciclo de palestras com os estudantes, uma espécie de “semana científica”, ou “semana de debates” em que, seriam os próprios estudantes a palestrarem, a defenderem ou criticarem teorias e ideias, coisas que se fazem nas universidades sérias. Mas, definitivamente, com todo o respeito às excepções, há cá muita gente a brincar de estudar. Pois, não é concebível que um universitário não frequenta debates e palestras promovidas pela sua própria unidade de ensino, não ouve as notícias, nem lê jornais, não consegue formular um ideia sobre um facto social simples! Que tipo de profissionais estamos a formar? Precisamos ser coerentes connosco mesmos! Devemos questionar a qualidade de ensino que nos propormos oferecer. A formação universitária de qualidade não nos será dada pelas belas salas e o moderno equipamento que possuímos antes sim, pelo esforço individual e colectivo que empreendermos no sentido da auto responsabilização e partilha de obrigações. A direcção da universidade tem que deixar de pensar que a sua parte é apenas criar condições matérias de ensino e colocar os professores diante dos estudantes e os estudantes devem desfadar –se da ideia de que na universidade ninguém lhe exige nada, desde que pague as suas propinas, o resto é do fórum pessoal ninguém tem nada a ver. Este estado de coisas, só irá exacerbar as abismais discrepâncias que adornam o mosaico de quadro angolanos quando comparados em; formados em Angola e formados no exterior. Deixemo-nos de falsidades, ninguém pode se arrogar ao direito de considerar a qualidade da sua formação uma questão pessoal. Aquela estória do “o mercado será selectivo, quem não se esforçar será adiante punido pela própria sociedade”, só serve mesmo de muleta para os quem já não quer caminhar. A qualidade da formação de qualquer um de nós, diz respeito a todos. É uma questão de segurança nacional. É sim, não estou a alarmar nada. Imaginemos que assim, continuem as coisas para todo sempre, não teremos confiança nos nossos quadros, em outras palavras, não estaremos seguros da qualidade dos quadros nacionais. Estas linhas foram escritas com o fim de provocar um diálogo entre todos os membros da nossa comunidade académica. Há perguntas que devem ser respondidas. É tudo um exercício de co-responsabilização.
O EDITOR

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Prostituição: um mal a Combater

A minha dissertação parte de uma reportagem que a TPA exibiu sobre a feira da saúde. Uma das ONG’s presentes na feira apelou a sociedade angolana a prevenir-se do HIV/SIDA, usando camisa de vénus nas relações sexuais ocasionais. E direccionou a sua acção especialmente às ditas “Trabalhadoras de Sexo” vulgo ‘prostitutas’, distribuindo os preservativos e sensibilizando-as sobre os riscos desta doença. Lançou um alerta às suas consciências para que se prevenissem das doenças sexualmente transmissíveis, principalmente do HIV/SIDA, usando os ditos preservativos quando estivessem em pleno exercício das suas funções, como se de uma profissão juridicamente reconhecida se tratasse.

A intenção de prevenir o povo desta doença do século é boa, mas direccionar tal sensibilização às “trabalhadoras de sexo” estaríamos a incentivar a prostituição, a admiti-la como uma profissão normal como as outras.

Que eu saiba, em Angola, das profissões que existem, a prostituição não está elencada. E ninguém paga o IRT (Imposto de Rendimento de Trabalho) pelo exercício daquela actividade (sexual); e como se não bastasse o Estado angolano não reconheceu ainda o trabalho de sexo como uma profissão. E se reconhecesse seria uma ofensa à moral pública, porque ofenderia a consciência moral do povo angolano que é eminentemente cristão. Além disso, estamos numa fase de resgate dos valores cívico-morais, perdidos por vários factores sociais, principalmente pelo factor guerra.

Angola tem carência de recursos humanos para a sua reconstrução mais célere. As mulheres que se entregam à prostituição para ganharem a vida, deviam ser aproveitadas para colmatarem o défice da força de trabalho que o país precisa, ao invés de sensibilizá-las para usarem preservativos nas relações sexuais.

É claro que cada um é livre em escolher a profissão que quiser; este é um direito constitucionalmente consagrado (art. 46º/3 L.C). Mas deve ser uma profissão digna à pessoa humana. Ora, a meu ver a prostituição não é uma profissão digna, na medida em que implica a exploração sexual da pessoa que se pode envolver com qualquer sujeito, pondo a própria vida em perigo, pois das várias relações que vier a ter poderá contrair qualquer doença venérea. Por isso, o Estado deve proibir todas a profissões que atentem contra a saúde e a vida da pessoa humana, aliás, esta é uma das muitas obrigações do Estado conforme dispõem os arts. 20º e 22º/1 da Lei Constitucional.

Portanto, mais do que aconselhar a trabalhadora de sexo a usar a camisa de vénus nas relações sexuais, o Estado tem a obrigação jurídica de desencorajar a vítima a enveredar por esta prática (prostituição), dando emprego a todos os cidadãos que, por lei, trabalhar, é um direito e um dever de todos (art. 5º da Lei Geral do Trabalho). A prostituição é um mal que devemos combater e extinguir. E este combate passa pela execução fiel das políticas de erradicação do desemprego que o Estado concebe.

O Articulista

Samuel Tchipaya Fortuna

Estudante do 4º Ano de Direito

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

CRÓNICAS DO NOSSO MUNDO

A TIA ZITA E OS BIOCOMBUSTÍVEIS

Jaime Azulay *

Lembro ouvir minha tia Zita dizer, mais de quarenta anos atrás, que por via das desigualdades entre ricos e pobres, o mundo estava roto e não havia mais linha para cozê-lo. As tiradas filosóficas de minha falecida tia eram profundas e impressionantes para a época e para o meio deserdado em que nossa família vivia em Novo Redondo. Acreditávamos que a preocupação de nossas mães, era de simplesmente lutarem pela comida do dia, lavando a roupa no rio Cambongo. Nós calcorreávamos os palmares descalços, ou ficávamos fisgando pequenos kizutis e bagres com nossas canas de bambú. As nossas disponibilidades e expectativas estavam, sem remédio, reduzidas ao essencial. A vida corria numa atmosfera desafortunadamente monótona. Mas naquele ambiente, aparecia sempre a nossa titia caçula, decifrando códigos na face oculta das coisas. Crescemos ouvindo as suas inquietantes reflexões, enquanto nos íamos revezando na única camiseta de teve fabricada em Macau, que eu e meu irmão Nelito possuíamos para ir à escola.

Meio século depois, o futuro da espécie humana continua incerto, tal como previu a minha tia. Os estudiosos falam em dinâmicas mutáveis e complexas interdependências de consequências imprevisíveis. Ouvi um rapaz bem parecido, falar na televisão, enquanto olhava para a sua gravatava de seda vermelha, que são exigidas abordagens sistémicas da realidade circundante. Num rodopio, o “doutor” chegou a um palavrão chamado globalização. A crise vai afectar a todos, ninguém se safa, ameaçou. Quanta verborreia para uma constatação a que a tia Zita tinha chegado pacificamente, do cimo da cátedra da sua terceira classe. Ninguém inventa nada. Vivemos do aperfeiçoamento de milagres originais, conforme escreveu James H. Kunstler. O mundo continua roto pelas mesmas razões dos ricos continuarem cada vez mais ricos e os pobres afundando-se irremediavelmente no abismo da miséria.

O “fosso das desigualdades” continua e continuará a aumentar. Em mais de setenta países, o rendimento por habitante é inferior ao de vinte anos atrás.

É arrepiante constatar que as três pessoas mais ricas do mundo são detentoras de uma fortuna que supera a soma dos Produtos Internos Brutos dos 48 países mais pobres do planeta. Cerca de um terço dos quatro mil milhões e meio de habitantes dos países em vias de desenvolvimento não têm acesso à agua potável e um quinto das crianças não dispõe da quantidade suficiente de calorias ou de proteínas, sendo que um terço da Humanidade, qualquer coisa como dois mil milhões de indivíduos, padece de anemia.

De acordo com o professor Ignácio Ramonet, o mercantilismo generalizado traduz-se num gigantesco agravamento das desigualdades. Em 1960, os 20% mais ricos da população mundial dispunham de um rendimento trinta vezes superior ao rendimento dos 20% mais pobres, o que já era escandaloso. todavia, em vez de melhorar, a situação agravou-se vergonhosamente. Hoje, o rendimento dos mais ricos, em comparação com o dos mais pobres, passou de 30 para 82 vezes mais elevado.

O mundo vive uma crise de alimentos, no entanto alguns países estão numa busca cega por biocombustíveis, a fim de substituir o festim do petróleo, que não é um recurso renovável, como se sabe. A produção desse combustível alternativo está a contribuir para que 100 milhões de pessoas nos países mais pobres vivam uma crise de alimentos. Jean Zigler, o antigo relator da ONU descreveu os biocombustíveis como “um crime contra a Humanidade”. Minha falecida tia Zita tinha razão: O mundo rompeu-se e não há linha para cozê-lo. Nem alfaiates.

*Estudante do Curso de Direito

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