UM ACORDEÃO EM LISBOA
Por: JAIME AZULAY*
O que me seduz nas grandes cidades não são as torres de betão, com espelhos que não devolvem sorrisos, nem o chamariz dos reclames luminosos digladiando nas fachadas dos edifícios: –“compra-me, compra-me, sou melhor que este e mais barato que aqueloutro!” Existe sempre um vagido Humano, gritando Liberdade na gélida floresta de concreto. Certo dia, navegava perdido no mar cosmopolita de Lisboa. Repentinamente, dei comigo encalhado numa ilhota singela, que o destino fez chegar até mim, sob a forma de inebriantes notas musicais. O som vinha das entranhas de um acordeão, que as mãos calosas de um velho cego faziam contorcer, num canto do metropolitano. Estava em Entrecampos.
As hordas humanas fluíam aos magotes, como carne empacotada, a subir e a descer das carruagens do metro, alheias aos gemidos suplicantes do artista solitário. Esporadicamente, uma mão apressada soltava uma moeda, que ia anichar-se num pequeno prato que o músico tinha diante de si.
Fui tragado pelo sublime chamamento, como acontece no mar aos marinheiros que ouvem o canto das sereias. Aproximei-me lentamente do velho. Ele tinha um rosto bexigoso e arredondado. Dos lábios irrequietos, pendia, displicente, uma beata de cigarro embebida em saliva escura. A sua figura divina diluía-se numa auréola de inquietante genialidade. Era como se dele não emanasse, sequer, um sopro de mortalidade. Somente espírito sereno vagando na imensidão.
Ao vê-lo tactear o acordeão, vislumbrei a fragilidade da existência terrena a exaurir-se, sem glórias nem honras, nas teias do egoísmo desmesurado e da petulante hipocrisia. Naquele instante crucial, desenhava-se ali a nossa angustiante encruzilhada: A vida seria ainda um sonho virgem, sonhado no regaço do universo infinito, ou já a tormenta do cosmos prostituído pelos foguetes espaciais? Ou talvez fosse, simultaneamente, tudo e nada, uma massa confusa de ódio e amor, lealdade e traição indissolúveis?
A música serpenteava no túnel em vagas sucessivas, como as ondas do mar, buscando com ansiedade, a essência dos seres e das coisas. Fundia-se no útero da terra ao magma dos vulcões adormecidos, que aguardam o sublime instante da majestosa erupção. O fole do acordeão vibrava, em cadência ora branda ora intensa, até ao limite virtuoso de um orgasmo sem fronteiras, o vulcão expelindo a pujante lava cor-de-fogo escorrendo pelas coxas da montanha verdejante.
Da garganta do velho gotejavam sussurros, que se iam ajustando, mansamente, à voz piedosa do acordeão. As notas musicais rodopiavam na partitura da virtude humilhada, do mesmo modo que rolam pela face dos amantes as lágrimas salgadas do amor perdido numa qualquer esquina da vida. Por instantes, a música ameaçava naufragar no oceano revolto da arrebatadora paixão, mas logo retornava, feita espuma nostálgica, atirada às praias da impossível renúncia.
As notas graves exilavam-se, resignadas, numa toada repetitiva, cadenciada no compasso das inalações sôfregas do fole, enquanto os dedos da mão direita cavalgavam as teclas como fogosos corcéis, galopando livremente pelas anharas da melancolia. E de novo bramia o canto da dor indizível, balançando na perfídia do mar escuro, e outra vez a harmonia branda a cobrir a areia fina do amor inocente, sem mágoas nem prantos.
Quando, finalmente, se extinguíram os acordes da sinfonia divina, o velho cego ergueu ligeiramente a cabeça, como quem destapa um segredo. Escondido sob o feltro do chapéu seboso, o seu semblante mágico banhava-se num indescritível lago de serenidade.
Foi numa manhã de inverno, que vi em Lisboa essa estrela fugaz riscando no céu o hino do amor.
*Estudante do curso de Direito
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