Carta de miúdo de rua (1)
Não sou fruto da guerra, sou miúdo feito na rua por razoes que diariamente procuro entender. Nasci neste pai grande e belo cheio de riquezas e belíssimas coisas. Por favor leia bem a minha biografia curtinha de vida. Vivia eu com os meus pais num lar lindíssimo e feliz. Tinha eu 10 anos quando meu pai apaixonou-se por outra mulher que estremeceu as suas veias, fazendo “entornar” seu juízo, tanto assim que passou a ser um animal feroz.
O nosso lar mudou, expulsou de casa: eu minha mãe e mais dois irmãos fomos viver em casa do meu tio Viriato. Passados quatro anos meu pai nunca mais deu sinal de vida dizem que esta domesticado, ninguém pode procurá-lo.Ate corre connosco, se o fizermos.
O coração de minha mãe não é de ferro, apaixonou-se por Pedro. Um grande senhor! Lembro-me que nos tratava como seus filhos. Ela era feliz parecia que encontrou o príncipe encantado, mais tarde “arranjou” uma casa e fomos viver com ele. Porem um ano depois a casa de paraíso tornou-se também num inferno. Acusava-me de mexer no seu dinheiro e noutros objectos sem qualquer razão. Porrada era comigo. Deixei de ir a escola porque tinha de vender alguma coisa para ajudar na alimentação da casa como ele pretendia. Sempre sonhei em ser professor de Matemática. Mas tudo começou a virar de patas para o ar, entre viver comigo e perder o seu (novo) grande amor ela escolheu o seu o seu marido.
Foi então que parti para rua para lutar pela sobrevivência, faço os meus negócios. E não crucifico minha mãe, o amor è fogo como dizem os cotas. Ai eu a perdôo.
Vivo numa cubata com Daniel meu puto, Há varias versões da nossa vida, mas tenho apenas a dizer que nem todos que vivem na rua são ladrões, drogados. Basta ver o cota Dom Cebola, vivia connosco agora estar a fazer a faculdade e “bumba” no banco . Uns poucos nos ajudam, todavia quando chega Dezembro várias organizações e pessoas singulares contribuem algo e dizem eles para passarmos um natal diferente como se só existíssemos neste dia. É que passamos muitas dificuldades. Lembro-me a dificuldade que tivemos ao enterrar o meu vizinho de quarto o Avex que o paludismo o levou, todas as portas se fecharam (até aquele cota que fez publicidade para angariar fundos pra nós, nos correu), tenho sinais das bofetadas que aquele mano que fala na radio me deu, quando perguntei-lhe se queria comprar algo que eu vendia. È verdade que ainda hà muitos angolanos solidários. Mas olharem só p´ra nos em Dezembro não é bonito. Não este certo.
Carta de um miúdo de rua (2)
Passamos um natal diferente, como eles queriam, ao lado de varias “figuras publicas” angolanas (cantores, modelos,deputados,governantes,jornalistas,desportistas,etc.). Deram-nos muitos brinquedos, alegria , comida (a quanto tempo não me alimentava!),carinho e amor ,coloriram o ambiente, não faltaram a boa musica e a dança , principalmente a do momento o do “milindro “. katumua,(o puto Chico)”nosso companheiro de luta” ,o rei do estilo confundia os presentes ,era o próprio “show man” quem não queria vê-lo a dar os toques ! Até um kudurista famoso da banda vai contratá-lo. Foi uma festa inesquecível ! recordei-me dos dias que meus pais viviam felizes ,tudo era maravilha , o natal era verdadeiramente um dia de família. A minha cantora preferida cantou e encantou no nosso palco, não imaginem como me senti.Tiramos fotografias com todas essas figuras,se eu pudesse mostrava-vos agora. Quem um dia deparar-me, peça-me para ver .
A ingratidão não faz parte do meu dicionário por isso, em nome de todos os meus “cambas” muito obrigado, por nos terem proporcionado um dia diferente . Trataram-nos como filhos ,parecia um lindo sonho. Naquele dia foi assim em quase todos os cantos do meu pais,quem entre nós passou fome !?
Dias depois a nossa vida voltou ao “normal”, nada era fácil, era preciso ir a luta. Os meus negócios continuaram a “render”, dias antes do natal “facturei muita massa”, por isso este ano vou estudar, se conseguir matricula (cada ano há mais alunos do que salas).O dia todo hei-de trabalhar e a noite “bucar”(pegar nos caderno e ir a escola).
Não sei como estão a minha mãe e os meus dois irmãos , sinto saudades de vocês. Aqui na rua o tempo é ouro, perdoem-me por não vos visitar .Não podia esquecer-me do meu pai apesar todo o mal que nos causou , um abraço “papoite”.
Ontem tive um dia que jamais esquecerei em toda vida, encontrei-me com uma “figura pública” que passou connosco o natal diferente , corri a atrás dela, entusiasmado próprio de uma criança, saudei-lhe e olhou-me sem compaixão de cima para baixo. Meus pés sujos e meu chinelo remendado, sobre as minhas mãos os objectos que eu vendia ,disse-me arrogante:
- “Sai daqui, não me chateia, seu ...”
Não imaginem como fiquei , gabava-me sempre aos meus amigos, aqueles que não estiveram no natal diferente ,cada dia que exibia-lhes as fotografias. Eles testemunharam o desprezo que me deram, riram-se tanto de mim que fiquei mudo , aborrecido... Sai dali, levei as minhas coisas e fui a casa, deitei-me no colchão que essa pessoa oferecera-me naquele dia. As lágrimas dançavam sobre o meu rosto todavia mais tarde levantei a cabeça e percebi que só somos importantes no último mês do ano, para a maioria das pessoas .Que dor!Não estamos a pedir dinheiros , comida todos os dias, nada disso que sejam mais amáveis e solidários ou continuarão a esperar o Dezembro. ?
D.S. Chipilica Eduardo (Benguela) 923269210
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