sábado, 3 de dezembro de 2011

África com kapa?

E porque hoje é sábado, e porque sorrir (e reflectir) é preciso, embarquemos por momentos no fantástico universo desse autor africano - Mia Couto. Um bom fim de semana e bom estudo a todos os piagetinos!
Marivalda Da Cruz
Escreve-se com kapa e dabliú!
O brasileiro não entendeu.
Como?
O meu amigo sorriu benevolente. Puxou a barriga para cima do cinto e dispôs-se a ajudar o funcionário da migração a preencher nossos papéis de entrada. Pegou na caneta e escreveu o nome, recheado de “k”, “w” e “y”.
O anfitrião brasileiro franziu o sobreolho. Remirou as fichas e, certamente, ressentiu-se de o terem corrigido. Ele tinha escrito o nome do meu compatriota, empregando as normas ortográficas da língua portuguesa. Usou as letras “c”, “u” e “i” onde o meu amigo insistia em emendar para kapa, dabliú e ipslon.
– Não percebo por que escreve assim – teimou o funcionário.
Temi que o meu companheiro de viagem puxasse de resposta arrogante. Mas ele praticou a sua gorda paciência.
Porque assim é que é a maneira africana de escrever.
E antes que o recepcionista retomasse o fôlego para mais pergunta, o moçambicano adiantou basta filosofia. Foi um discurso. Ali mesmo, entre malas e empurrões, pronunciou-se: era urgente romper com as imposições ortográficas da língua dos colonizadores. A revolução, exclamou ele, é para isso mesmo, para romper espartilhos. Uma dama que passava escutou a sentença e, desconfiada, apressou-se a sair dali. O meu compatriota continuava, inflamado.
– Temos que assumir as nossas raízes africanas, respeitar as nossas tradições.
Aqui o brasileiro conseguiu interromper.
Será que os kapas são mais africanos que os cês?
Era uma pergunta, sim senhor. Afinal o brasileiro estava de espertezas. E discutiram-se os dois, divergentes. Eu não emiti opinião: não queria que se fizesse trivergência. Nem fica bem entrar num país com pé na controvérsia. Mas os dois prosseguiam a questão que se colocava. O brasileiro despachava argumento atrás de argumento. Dizia que, para ele, se tratava de pura transferência das normas do português para as do inglês.
Você sai da sombra da mangueira para entrar na sombra do abacateiro, moço.
O moçambicano ficou embaraçado, descontou no discurso a demora de um raciocínio à altura. Mas não contra-atacou directo. Preferiu uma incursão no flanco do adversário.
E sabe que mais, meu caro? Há muita revolução por aí que se distraiu na dignificação da personalidade.
O brasileiro solicitou explicação. Então o Gorbatchov ainda não tinha rompido com o alfabeto de S. Cirilo? E Fidel de Castro, tão consequente em tudo, mantinha-se agarrado a padrões instituídos pela monarquia espanhola? E ambos se alfabatiam.
Atrás de nós já uma considerável bicha de pessoas se impacientava. Alguns comentavam: parece que é gente ligada a esse negócio de Acordo Ortográfico. Uma voz se ergueu nervosa:
E será que vão assinar o acordo aqui, no balcão do aeroporto?
Os dois contendedores resolveram adiar o despacho final da querela. O funcionário pegou então nos meus papéis e disse, levantando o rosto em desafio:
Pronto, também emendo o seu. Mas é só por esta vez, viu?
E com gesto enérgico, riscou a ficha. No formulário, em letras garrafais, escreveu: MYA KOWTO.

 COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991. p. 171-173

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