domingo, 25 de março de 2012

A propósito da dimensão sociocultural da literatura

Os Estudos Literários constituem-se como disciplina de carácter introdutório, do programa do 1º ano da Licenciatura em Ensino do Português e Línguas Nacionais. Trata-se de um disciplina que visa, fundamentalmente, alargar o sentido crítico e reflexivo dos estudantes em relação ao fenómeno literário, entendido como uma forma de manifestação artística do ser humano, à semelhança de outras manifestações artísticas como a pintura, a música, a escultura, etc. Se a pintura usa como matéria a cor, as tintas, digamos que a matéria da literatura é a linguagem, ou melhor, a linguagem literária. Mas para além desta dimensão estética, a literatura integra, necessariamente, uma dimensão sociocultural e histórica. E, digamos que, de forma muito sucinta, é este o ponto sobre o qual pretendo tecer algumas considerações no que se refere a algumas estratégias de exploração do tema em contexto de sala de aula.

Entre muitos outros autores, o teórico da literatura Carlos Reis, coloca a questão nos seguintes termos: "A literatura envolve uma dimensão sociocultural, directamente decorrente da importância que, ao longo dos tempos, ela tem tido nas sociedades que a reconheciam (e reconhecem) como prática ilustrativa de uma certa consciência colectiva dessas sociedades." (in, O Conhecimento da Literatura, p. 24)

Assim, após a abordagem teórica com recurso às teorias da literatura, (o que, digamos, oferece uma certa resistência), a questão que se coloca é a seguinte:

Como operacionalizar os conceitos abordados? Que estratégias? Que textos literários selecionar para a exploração dessa dimensão sociocultural? Ou ainda, que entender e de que forma se manifesta na prática nos textos literários uma determinada consciência colectiva de uma sociedade e o próprio devir histórico?

Muito bem, para exploração dos conceitos referidos, elegemos uma composição do riquíssimos corpus da Literatura Tradicional (Oral) Angolana. Segue-se a transcrição do texto literário escolhido, uma composição poética do povo cuanhama, recolha feita pelo Pe. Carlos Estermann registada na obra  Etnografia do Sudoeste de Angola:

As grandes rãs, haisikti, saúdam a tua vinda
as aves aquáticas
e o homem nobre.
Quando ela (a chuva) aparece, exclama:
«Ó terra estável e sólida, encharco-te de água,
Kadiva (pequena depressão onde creesce o colmo),
                                                          [cubro-te de água
Apenas o omufito (terra arenosa), forte como eu,
                                                    [ousa resistir-me!»
A sua manteiga (da chuva) é a rã,
A sua gordura é a tartaruga.
Oh! As próximas chuvas não cairão já
Sobre os bois velhos e magros
Tu (pastor ou proprietário de gado) poderás chupar
[o leite das tetas.
A chuva é a mãe de panelas de pirão,
E mãe do cesto cheio no tempo frio.
Que ela venha! Para que nós, miseráveis, não sejamos
                                                             [obrigados a roubar
E, exaustos, famintos, não pensemos em apoderar-nos
                                                                             [do alheio!
Após uma leitura em voz alta da composição, segue a exploração textual no sentido de recuperar os modos como, através das imagens recriadas, o universo representado, as metáforas, os campos semânticos que concorrem para a recriação de todo um universo, o modus vivendi , uma determinada visão do mundo de, uma comunidade que, através de uma espécie de cântico poético, dá voz ao seu sentir e pulsar.

Pela explicação que nos dá Estermann, sabemos já que uma tradução literal do poema é impossível. Sabemos assim que «Haisikoti» “ um carreiro batido, batido aqui pelo pisar de muito gado. A chuva evoca, na mente do poeta, intermináveis filas de bois luzidios que passam pelos tortuosos caminhos do mato.”

Identificamos assim à partida o tema do poema: a chuva. A partir deste conceito central, tema da composição, passamos ao levantamento de conceitos / expressões que concorrem para a construção de um campo semântico, isto é lexemas que se organizam numa rede de sentidos, como seja o lexema rãs (1º v.), aves aquáticas (2º v.), encharco-te, água (5º v.), água (7º v.)... que concorrem para a recriação de todo um universo através de imagens sugestivas que apelam quer ao nosso conhecimento do mundo, quer à nossa dimensão sensorial. Visualizamos a chuva contínua que encharca os campos, o trilho batido pelo pisar dos bois, o coaxar de rãs que saltitam, as mães que preparam o pirão nas suas panelas, em síntese uma profusão de sons, imagens, cheiro, (sinestesias) sob os quais se arquitecta toda a estrutura interna do poema.

Pela eleição do tema – a chuva – toda a imagética em torno desta, concluímos pela importância vital desta para todos os membros da comunidade. Elemento seminal à volta do qual se instauram os diferentes ciclos de vida. Esta, (a chuva) é símbolo de fartura, de abundância, alimento para todos. É ela que sacia a fome, tornando a terra fértil para a produção de bens alimentícios como o milho, a mandioca, etc. As imagens sugestivas desta dimensão positiva da chuva revela-se ao longo das metáforas disseminadas ao longo do texto: “A sua manteiga” (da chuva) é a rã” (v. 10); a sua gordura é a tartaruga. (v. 11); “A chuva é a mãe de panelas de pirão” (v. 16); “e mãe do cesto cheio no tempo frio” (v. 17). Deduzimos com clareza que a prática de um tipo de agricultura de subsistência e a criação de gado são o seu modo de subsistência. E se a chuva significa prosperidade, a sua ausência é também sinónimo de escassez de recursos, seca, fome, miséria que pode, nomeadamente, levar ao roubo do alheio. Daí, pela sua importância, nasce esta espécie de exortação, esta prece à chuva: “Que ela venha!...” e consigo o gado será generoso na produção de leite, leite abundante e gordo com que se fará manteiga para saciar todos os membros da comunidade.

Introduz-se a noção de que a poesia, mais do que afirmar, sugere. É assim, através de uma sucessão de metáforas, todo um conjunto de imagens que, pela mestria do ofício poético, se instaura a representação (recriação) de um universo, que apela, em simultâneo, à nossa dimensão racional, e à   dimensão do nosso imaginário.  Da mesma forma, ao darmos voz ao “texto”, ou seja, pela fruição estética do mesmo, actualizamos a voz, o “espírito”, o palpitar de um povo, o Homem. Nesse sentido ecoa o pensamento aristotélico segundo o qual a Literatura participa, juntamente com a Filosofia na busca do ser humano do conhecimento, o conhecimento do que é a essência do homem.

Marivalda Da Cruz Gonçalves
Docente e coordenadora da Licenciatura
Ensino do Português e Línguas Nacionais

2 comentários:

  1. grato pelo conteúdo...

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  2. Gostaria que se abordasse tambem sobre a poesia experimental... grato pela materia

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