CONTER A CRISE
Arrisco que teremos uma mão cheia de promessas e outra com pouco menos do que quase nada”.
Esta antevisão não se revelou correcta. A cimeira não produziu os resultados que seriam necessários para enfrentar a crise com justiça social. Também não anuncia, como titulou o The Guardian, uma “nova ordem mundial”. Esse tipo de sínteses, repetidas à exaustão nos media internacionais, não passam de propaganda. O melhor exemplo dessa caricaturização foi a proporcionada pelo principal diário belga, o Le Soir, que titulou, em números garrafais:
5.000.000.000.000″
Por outro lado, não ficou tudo como dantes. Os líderes, desta vez, não se limitaram apenas a palavras.
Porque a crise é, na realidade, uma depressão mundial sem paralelo no tempo das nossas vidas, o G20 foi tão longe quanto pôde - e seguramente mais do que quase todos gostariam - nas decisões que visam “conter a crise” em parâmetros que não ponham em causa a sua própria liderança. O ponto de vista de Londres é o do Leopardo de Luchino Visconti: mudar o que for necessário para que os de cima continuem por cima.
A esquerda não deve subestimar a capacidade de regeneração da ordem capitalista. Fazê-lo, seria subestimar o próprio capitalismo, bem como a dimensão da crise que o atinge.
A GRANDE TENSÃO: COORDENAÇÃO E COMPETITIVIDADE
Há algo de surrealista nos debates que antecederam o G20. Os norte-americanos insistem na despesa orçamental, os europeus na regulação e supervisão do sistema financeiro e os chineses na reforma do sistema monetário. Dir-se-ia que todos têm a sua parte de boas razões e não se percebe porque não somam. O mistério só se deslinda se lermos a coisa ao contrário: os norte-americanos gostariam de não mexer no sistema financeiro, os europeus de se manterem fiéis à ortodoxia do défice e ambos desconfiam dos chineses. Finalmente, os líderes dos países emergentes querem, acima de tudo, proteger as vantagens comparativas de que desfrutam na liberdade de comércio em escala internacional. Lamento, mas no G20 falta quem fale pelos mais pobres. É esse o verdadeiro problema”.
A conclusão principal que propunha na minha crónica mantém-se acertada. O G20, que na realidade já são 23 (a Espanha, a Holanda e a república checa entraram no clube, embora a última dele vá saltar rapidamente porque entrou à boleia da presidência da UE), reflecte os interesses e as contradições entre as burguesias dos países mais industrializados e as dos emergentes. De facto, os pobres só podem co-decidir desde que as ditas se transfiram deste tipo de círculos informais inter-estatais para as Nações Unidas. A primeira razão porque não se pode falar de “nova ordem” é porque a “velha ordem” assente nas diferenças de poder entre as nações é a que se reproduz no exacto momento em que deveria desaparecer.
Dito isto, a tensão que atravessou a cimeira é a que decorre da contradição entre a dimensão mundial da crise económica e social e a escala nacional ou regional em que se legitima a política.
O que até há pouco continha esta contradição era - e ainda é - a condição imperial dos EUA em escala planetária. Contudo, a nova administração sabe que esse estatuto, além de estar a abrir rombos por todo o lado, não permite responder às necessidades colocadas pela presente crise. Esta age como acelerador de todas as mutações que já se encontravam em curso na economia mundial. Por enorme que seja a superioridade militar ou infinita a capacidade de projecção do dólar, os EUA não têm condições para, isolados, “isolarem” o vírus da crise e impedirem a sua propagação. Os mais avisados na administração norte-americana suspeitam, aliás, de que o centro do império é mais parte do problema do que da solução.
O que a cimeira do G20 introduz na agenda política mundial é um compromisso instável entre as escalas da economia e da política. A crise mundial da primeira exigiria uma governação mundial, mas esta revela-se impossível, além de improvável, porque a política continua a ser nacional e regional. As actuais lideranças sabem que precisam de “coordenação”; mas por outro lado, a economia mundializada continua a assentar no sacrossanto principio da “competitividade” é acicatada pela própria crise. O G20 não resolve a contradição - procura desesperadamente um compasso de espera algures entre elas.
Os números que melhor expressam esta tensão são três:
750.000.000.000 de dólares de recapitalização do FMI aos quais se devem acrescentar 100.000.000.000 para o Banco Mundial; 250.000.000.000 de dólares de apoio ao comércio internacional em 2009 e 2010, que se prevê que recue 9% este ano; 6.000.000.000 de dólares resultantes da conversão em moeda das reservas de ouro do BM, que se destinarão aos países pobres.
Estas são, de facto, as novas injecções de capital na economia mundial. O montante é globalmente significativo, apesar de insuficiente. É ele que permite aos EUA falar em relançamento partilhado, aos países europeus manterem a sua ortodoxia anti-investimento público (são a Índia, a China e os Direitos Especiais de Saque que irão financiar a recapitalização de um FMI em situação de quase falência técnica), aos emergentes compensarem parcialmente as perdas no sector exportador e a todos eles afirmarem alto e bom som a sua preocupação com os mais pobres.
Este compromisso encerra o período histórico do Consenso de Washington. Mas não abre senão uma fase onde todas as modificações na relação de forças passarão a ser pilotadas à vista. Porque este é o quadro, os principais países trataram de garantir que não existirão mexidas no sistema de voto do FMI até 2012. Aliás, não se alteram nem os votos, nem as condições dos empréstimos do FMI. Por muito que a cimeira de Londres admita “flexibilizá-las”, a prática recente do gigante na Ucrania, na Letónia e na Hungria mostra como não aprende nem esquece nada… Os 20 juraram ainda abster-se de práticas proteccionistas no comércio internacional. Eles não devem ser levados particularmente a sério neste domínio: entre Novembro de 2008 e Março de 2009, 17 dos 20 fizeram o que tinham a fazer para protegerem sectores que consideram vitais. Do mesmo modo, não se vê como possam concluir o que não concluíram até aqui - o ciclo de Doha, iniciado em 2001 e destinado a liberalizar o comércio internacional. Os tempos de crise são os piores para tais aventuras.
A hipótese de que a esquerda deve partir é esta: a “coordenação” pode, ou não, ser suficiente para conter a crise; mas é seguramente escassa para a debelar. Existe, alíás, um curioso paradoxo nas medidas tomadas: do ponto de vista da lógica do sistema, elas atrasam a “solução” porque procuram salvar o que o mercado condena - economias, empresas e serviços menos competitivos.
FINALMENTE, A MÃO CHEIA DE QUASE NADA…
Claro que os que tudo sabem dirão que regular o sistema financeiro, combater o proteccionismo e relançar a economia são as condições da luta para erradicar a pobreza. Há alguma verdade nisto. O problema é que há meses que nos dizem que estas são as prioridades e os resultados são os que se conhecem”.
Onde nitidamente os compromissos não passam de palavras é nas medidas de regulação do sistema financeiro e na reforma do sistema monetário internacional. Não é por acaso.
Os paraísos deixarão de ser judiciais, mas vão continuar a ser fiscais; as agências de notação bolsista passarão a ser prudencialmente supervisionadas, mas não deixarão de ser “independentes”, ou seja, dependentes do próprio mercado; os títulos especulativos de curto prazo passarão a ser acompanhados, mas não serão proibidos nem punidos; os bónus e vencimentos dos executivos deixarão de depender tanto do curto prazo, mas a vida não deixará os seus créditos por mãos alheias. Quanto ao mais - o império do dólar no sistema monetário - isso é conversa para outras calendas. O G20 persegue um sonho: o de que, passada a tormenta, tudo possa voltar ao “como dantes”. Nisso se enganam redondamente.
Fonte: http://www.miguelportas.net/blog
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